segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Contemplação

Agora, em algum lugar lá fora, está um cavalo escondendo-se da tempestade. O dorso, cor de bronze, fica completamente branco, tingido pela luz do céu. Esse animal não sabe bem quem é, não conhece os olhos que tem.
São puramente olhos de cavalo muito vivo, um que corre, trota e empina. Não faz ideia da força que tem. Esse animal é tão forte quanto os lobos que o perseguem, ou quanto os homens que o dominam. É tão forte quanto as moscas que o atormentam.
Acontece que agora nada importa, porque chove, e a chuva é um pedacinho de morte. Eis um segredo: no interior de cada olhar há o brilho das chuvas do mundo. Chover é cair na terra a luz dos olhares.
Lá está ele, nosso cavalo, até pode-se ver. A crina negra escorrendo molhada, as patas sensuais tremendo de medo e excitação. Lá está a curva da nuca dele. O movimento, a direção, o sentido. Não haverá, então, um único dia de sol capaz de apagar essa noite de intensa tormenta.
Mas ele não sabe, não. Ideia não faz de que amanhã poderá quebrar a perna em um barranco e terminar levando um tiro entre os olhos. Continua a desimportância. É preciso lembrar: já há um pouco de morte em cada olhar. E essa chuva toda já está molhando o meu cavalo.

4 comentários:

  1. Gostei bastante do teu blog, ótimos textos! Abraço

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  2. Ah, que doce aventura ler você nas palavras que parecem suas! Certos encontros demoram para nos trazer mais que alegrias. Devia, há tanto, essa visita! Mais do que o prazer da leitura, trouxe-me sua imagem cheia dos olhos a que tanto se refere... Seus olhos, plenos de compaixão para comigo - nas aluas e para além delas.
    Chove agora. Lá fora, as gotas defuntas me lembram da vida que ainda há, do tempo que não podemos perder para dizer certas coisas que podem morrer conosco...
    Foi mesmo um grande prazer conhecê-la, minha querida. Uma recompensa sentir-me seu professor!
    Um beijo de ternuras.
    Valtinho

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  3. "Agora, em algum lugar lá fora, está um cavalo se escondendo da tempestade". Esse primeiro trecho é a temática do conto, pois já evoca os dois objetos explanados adiante: o cavalo e a tempestade.

    "São olhos de cavalo muito vivo, um que corre, trota e empina...": porém, aqui há uma redundância, daí desnecessário escrever esse trecho. Pois todo cavalo corre, trota e empina. A não ser que esse correr, trotar e empinar dele seja feito de forma distinta de outros cavalos.

    "Eis um segredo: no interior de cada olhar há o brilho das chuvas do mundo." Aqui você faz uma referência generalizada, em vez de só deixar essa referência no olhar do cavalo. Deveria ficar as imagens somente restritas ao cavalo.

    "Essa animal é tão forte quanto os lobos que o perseguem". Citar "lobos" nesse texto achei inadequado. Pressupõe que essa cavalo provavelmente se situa em um solo americano ou europeu. Aqui no Brasil, o único lugar que existe lobos é no Centro Oeste_ o Lobo Guará.

    "Lá está ele, nosso cavalo, até pode-se ver." O termo o "nosso cavalo" é interessante aqui. Semanticamente esse uso do "nosso" é uma forma de generalizar( ou aproximar do leitor) que o cavalo e sua situação na tempestade e coisa muito íntima e nossa. legal.Semelhante correlação se encontra em: “E essa chuva toda já está molhando o meu cavalo. “ Novamente o uso de “meu” cavalo. Esse pronome ´da uma ideia de aproximação, de intimidade do objeto que se sente representado.

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  4. “É preciso lembrar: já há um pouco de morte em cada olhar”,
    “Eis um segredo: no interior de cada olhar há o brilho das chuvas do mundo. Chover é cair na terra a luz dos olhares.”;
    Esse animal não sabe bem quem é, não conhece os olhos que tem. São puramente olhos de cavalo muito vivo;
    Mas ele não sabe, não. Ideia não faz de que amanhã poderá quebrar a perna em um barranco e terminar levando um tiro entre os olhos".

    O olhar como sabemos é a janela da alma. E que esse olhar do cavalo pode ser o nosso. Vejamos: o “pouco de morte em cada olhar” e “no interior de cada olhar há o brilho das chuvas do mundo”. Se esse cavalo não “conhece os olhos que tem”, você deu a conhecer-nos esse “olhar vivo”. Olhar que há um pouco de morte e brilho das chuvas do mundo.
    Evoco isso, pois lembro que quando eu era pequeno morador na roça, vi um cavalo pegando chuva. Ele parado em pé recebendo toda aquela água. Como se ele fosse uma coisa insignificante e triste. Chuva tamborilando é coisa triste de se ver, ainda mais ver algum animal assim debaixo da chuva. Então, vejo que você tentou captar uma “imagem” semelhante assim ou que você gosta de olhar a chuva e sentir a tristeza da água que cai e se “projetou na figura do cavalo. E para desviar seu olhar sobra a imagem descrita, transfigurou-se no “olhar” do cavalo toda a expressão de tristeza e morte que a gente sente quando ver chuva. Pelo olhar do cavalo e as metáforas que você deu a ele, foi uma forma que você sente quando vê a chuva ou "mostrar "pela janela da sua alma tudo o que se resume no olhar vivo do cavalo. Assim, pela experiência "projetada" no conto, foi um conto muito bom!

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