quinta-feira, 21 de junho de 2012

Inseto

Encontro-me, agora, dentro de uma xícara de café. Sei que isso é verdade, porque posso ver, minúsculo, o pó que dá cor à água. Posso sentir o aroma forte e bom, que deve vir mesmo de dentro de mim e não de fora. Posso, ainda, sentir muito calor e ver muito pouco por conta da névoa, neblina: parede clara e interminável me envolvendo, sem início e sem fim.


Uso como barco uma bolha de espuma cor de café-com-leite. Mas não há leite aqui dentro, e nem açúcar. Nada que perturbe a amargura. Como remos, uso os braços. Os dedos vão ficando vermelhos e queimados, e as conchas formadas pelas mãos transportam o líquido à boca.


Aqui não há fome, ou sede. Aqui não existe desconforto, apenas mistério. Não sei sair e não sei se quero. Daqui posso ver o céu, seu movimento e suas cores. Mas não sinto cheiro de nada, só de café. Não sinto gosto de nada, só de café. O café é o meu lar.


No navegar há certo enjoo, certo nojo, delicioso balanço desagradável por dentro. Mas mesmo no lar, a boca vai aos poucos tornando-se uma tubulação horrenda, esgoto, refluxo e medo. O aconchego recebe, carinhosamente, um banho de café quase fervente. Chega o bule celeste! Com sua boca metálica, ardendo impiedosa.

Mais uma vez fica o corpo inteiramente incendiado e, lasso, observa o céu noturno movendo-se com seus ares, aromas, cores. E aqui, nada sinto. Sou apenas café. Café, café, café! E porcelana. Sou café e a branca, fria, circular porcelana. Ela é o que me mantém. Refrescante e apaziguadora.

Gostaria de ser engolida por uma boca amarelada. Não, sou sempre devolvida ao mar da minha vida. O estômago dói e começa a ser insuportável o perfume do líquido despejado. Não há esperanças.

Porém, esta é uma noite diferente. Noto, sim, um som que se aproxima como agulhas ambulantes. Parecem escalar a parede clara de minha casa. E eis que o vejo: um inseto cheio de pernas e antenas. Boca feita de lua pela metade, luz. Minha lanterna na escuridão, bicho trabalhador. Vem atraído pelo esforço que lhe é natural, em um período pessoal. Vem trabalhando numa noite que é a de dentro de si. Nem sabe mais o que é normal. Quer se alimentar.

Desce pela porcelana nebulosa de meus dias e com sua garra coletora, boca lunática, apanha meu corpo desprezível. Encontro-me, agora, montada em um inseto exemplar. Adjetivo. Aqui sinto cheiro de tudo, mas não de café. Sinto um gosto que não é de café. Aqui tudo é verde, e meus olhos alcançam tudo. As coisas de fora agindo em mim. Absolutamente tudo.

E há aves no céu como eu sabia que havia. Eu sabia! Meu branco lar vive sobre uma mesa de madeira, que vive em uma varanda. Sigo errante sobre a vida que quer me devorar. Finalmente...