terça-feira, 19 de março de 2013

Movimento


Ah, não posso encontrá-la novamente. Não quero. Poder, posso, mas não quero. Simplesmente porque tenho medo do que aquele monstro se tornou. É verdade! Eu me lembro de que havia um monstro dentro dela. Um filhote de uma coisa que crescia e nós não fazíamos a menor ideia do que era. Ficávamos juntas às tardes tentando desvendar o mistério. Era algo tão grandioso que parecia até mesmo se mover ali dentro da barriga, da garganta. Era uma coisa esquisitíssima. O monstro. Assim chamávamos a coisa. Devia se alimentar também. Mas de quê? Perguntávamos uma à outra, pensativas.

Eu me achava tão menor que ela naquela época. Claro, pois eu não tinha uma criatura crescendo dentro de mim. E nem um bebê eu queria, não pensava em tais assuntos. Mas o pior é que a criatura, de conteúdo imenso e de tamanho mínimo, não era um bebê, não era uma coisa gerada naturalmente pelos humanos.
Eu vivia por minha querida. Queria até mais do que ela descobrir o que havia ali dentro. Dentro daquele belo corpo. Eu o achava belo. O que me perturbava mesmo era sua alma.

Às vezes, em sonho, eu conseguia ver a alma dela. Aparecia-me cinzenta. Uma mistura de negro e marrom, tudo borrado. Porém, sempre havia no centro da fumaceira daquele espírito um grande ponto vermelho.
Acho que sonhava com isso tudo porque a minha querida sempre dizia que não achava o monstro coisa boa. Pensava que era algo que a destinava ao fracasso. Um veneno que a estragava por dentro. Eu discordava. Para mim, era uma criatura que já nascera com ela, como um dom, para que ela fizesse grandes coisas magníficas. Ela própria era um garota magnífica. Fazia crescer em mim uma esperança tão verde! Esperança de sei lá o quê! Talvez esperança pelo mundo todo. Por mim, inclusive. E, de novo, pensar que ela possuía tal habilidade, a de salvar o mundo, fazia-me sentir muito pequena. E com certa raiva, pois a menina não dava a menor importância para aquele talento! Como podia?

Eu queria estar perto dela de uma forma um pouco agressiva, forçosa. Queria acompanhar o processo de crescimento da coisa. Se aquilo era a nossa salvação, minha e de nós todos, eu não podia me afastar! Ficaria, até mesmo contra a vontade daquele corpo que eu amava. Corpo que guardava a esperança. Só que tão fraco... Pobrezinha da minha amada, ela era fraca. Negava o que gerava dentro dela. Não percebia a importância que tinha, o templo que era! Eu notei, então, que tinha um pouco de inveja. Confesso. E que a amava cada dia mais. E cada vez mais ela fazia parte de toda a minha vida.

Pior que dar-se conta dessas coisas era notar que, puxa vida!, o monstro um dia iria nascer. Seria adulto. Trocariam de lugar? Eu não sabia e, por isso, senti muito medo. Um terror começava a tomar conta de mim. Quando eu a olhava, era o monstro que me respondia, muito recíproco, com olhos imensamente negros. Quando eu a tocava, os arrepios que sentia eram dele que vinham. E se ela estivesse certa? E se ele fosse coisa ruim? E se não fosse para salvar, mas para arruinar?

Um dia, arruinou mesmo. Ela estava desabrochando como uma flor. Para o amor, isso não soa mal, não soa ridículo. Ela estava apaixonada. Mas não por mim, ainda que me amasse. O caroço que era o filhote dentro dela agora só me trazia medo, agonia. Eu não suportaria. Antes era bom sonhar com a esperança. Agora a possibilidade de que eu estivesse enganada me assombrava. E me fazia crescer. Se eu fugisse, não seria tão pequena diante dela. Eu fugi e a deixei livre.

Hoje, aqui na cama, pensei em ir vê-la, depois de tanto tempo. Mas e se o corpo não estiver mais lá? Oh, não... Não quero. Se os olhos forem aqueles negros de tempestade, aqueles cheios de força, eu não os quero ver nunca mais. Meu coração vibra cheio de uma certeza estranha de que, finalmente, ela tornou-se o monstro que gerava. Porém, ainda quero guardar para mim a pequena incerteza do destino.

Um comentário:

  1. "Porém, ainda quero guardar para mim a pequena incerteza do destino." - A incerteza do futuro é o que nos leva e impulsiona a procurar e descobrir, essa incerteza gera um sentimento de "quero mais".

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